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terça-feira, 7 de junho de 2011

A arte de maquiar defuntos e as pseudoinovações educacionais

Autor: Eduardo Chaves

Diferentemente do que fiz em vezes anteriores, vou dividir este artigo em blocos numerados, para destacar bem o argumento. E vou fazer uso de algumas metáforas, a primeira delas, admitidamente, não de muito bom gosto. Ao final, receio, a metáfora de mau gosto será, talvez, o aspecto menos inaceitável deste artigo para a maioria dos leitores. Mas que assim seja.

1. A arte de maquiar defuntos

O defunto está lá na mesa do velório, mortinho da silva. Nós nos consolamos, e imaginamos consolar os outros, dizendo: “Mas ela está tão linda, não? Parece que está apenas dormindo…”.

Saber maquiar defuntos é arte valiosa em nossa sociedade, porque cada vez mais procurada. Ela faz com que mortos pareçam Belas Adormecidas, prontas para serem despertadas com o beijo casto de um príncipe.

O ofício do maquiador de defuntos faz uso de tecnologias e materiais sofisticados para disfarçar a impressão sempre ruim da morte e reduzir o seu impacto doloroso.
 
2. Investir ou trocar?

Mudando (felizmente) de assunto e metáfora, se a gente vê alguém colocando rodas de liga leve em seu carro, trocando pedais, instalando volante esportivo, substituindo bancos de tecido por bancos de couro, botando para-brisa ray ban ou insufilm, é legítimo concluir que a pessoa acredita que o carro, no essencial, ou seja, naquilo que afeta a sua operação, está basicamente em ordem, e que vale a pena investir nos detalhes cosméticos, que afetam apenas a sua aparência. Em suma: a pessoa acredita que vale a pena conservar o carro, investindo nele.

Se a gente vê alguém colocando pneus novos no carro, trocando amortecedores, ajustando embreagem, regulando freios, retocando lataria, é legítimo concluir que a pessoa acredita, por qualquer razão, que é um bom negócio conservar o carro, desde que sejam feitas algumas reformas no essencial, no que afeta a operação do veículo, mesmo que os recursos investidos nessas reformas sejam relativamente significativos. Em suma: a pessoa acredita que, com as reformas, o carro ainda poderá durar bom tempo.

Quando, porém, a gente vê alguém trocando um carro usado por um carro novo, é legítimo concluir que a pessoa acredita que não compensa mais investir no carro velho e que vale a pena mudar para um zero quilômetro. (Numa eventual troca, investimentos significativos feitos no carro que se quer trocar raramente se traduzem em preço proporcionalmente maior, de modo a justificar o investimento).

3. A razão do exercício

Por que começo este artigo mencionando essas coisas?
 
Por uma razão simples, que ficará evidente na sequência. Mas posso dizer desde já que a razão tem que ver dois trinômios: “educação, tecnologia e mudanças” e “reforma, inovação e transformação”.
 
4. Conservar, reformar ou transformar?

George Scharffenberger, que foi diretor da ONG global WorldLinks, ligada ao Banco Mundial, uma vez disse (numa reunião em Brasília, em 2004, da Comissão de Educação do World Economic Forum, de que tive o prazer de participar, representando o Instituto Ayrton Senna) que, encarando as coisas no nível mais básico e amplo, a tecnologia pode ser usada na educação (especialmente na educação escolar) fundamentalmente de três maneiras:

•Para sustentar (apoiar) o que já se faz

•Para suplementar (estender) o que se faz

•Para subverter (transformar) o que se faz

Esses os “três esses”: sustentar, suplementar, subverter. Poderíamos dizer que eles representam o uso, respectivamente, conservador, reformador e transformador da tecnologia na educação (especialmente no caso da educação escolar).

O professor que usa o computador para projetar slides em PowerPoint em vez de escrever no quadro negro da classe, ou que indica para leitura textos disponíveis na internet em vez de textos impressos encontráveis na biblioteca ou adquiríveis em livraria, se enquadra na primeira categoria. A tecnologia, nesse caso, não altera substantivamente nada nos processos por ele utilizados: apenas os torna, talvez, um pouco mais eficientes e “charmants”.

O professor que usa a internet para estender (no espaço e no tempo) o alcance de sua sala de aula se enquadra na segunda categoria. Ele suplementa o que antes fazia com, digamos, um site de apoio, um blog, um grupo de discussão numa rede social, um chat. Educação a Distância, ou E-Learning, especialmente quando a metodologia se esgota em Ensino a Distância, com quase nenhuma discussão substantiva, se encaixa também aqui.

O que se enquadra na terceira categoria ficará mais claro no decorrer deste artigo. Mas são processos que vão além do que já se faz, e, em última instância, subvertem a prática pedagógica corrente, em favor de algo totalmente novo – ou seja, altamente inovador.

5. Inovação

O fator inovação no uso da tecnologia na educação é diretamente proporcional a essa sequência: uso conservador, uso reformador, uso transformador. Quanto mais transformador (vale dizer, subversivo do paradigma atual) for o uso da tecnologia na educação, mais inovador ele será; quando mais conservador, menos inovador ele será.

Essa não é uma conceituação arbitrária de inovação. Inovar tem que ver com introduzir o novo. É difícil imaginar como é possível inovar enquanto se procura conservar o velho. O próprio Mestre disse, dois mil anos atrás, que não se deve colocar vinho novo em odres velhos.

6. Quem se arrisca a inovar na educação?

Nesse espírito, mas levando a discussão um pouco adiante, Nicholas Negroponte, ex-diretor do Media Lab do MIT, celebridade da área de educação e tecnologia, e pai da ideia de que cada criança de hoje pode e deve ter seu próprio computador (One Laptop Per Child), disse – em palestra que tive o privilégio de assistir, no Consortium of School Networking (CoSN), em Washington (DC), também em 2004 – que se desejarmos encontrar práticas realmente inovadoras na educação, não devemos procurá-las nos países que têm bons resultados nas avaliações internacionais da educação escolar, como é o caso de Finlândia, Hong Kong e Coreia do Sul. Por estarem entre os mais bem avaliados em testes como PISA, esses países (compreensivelmente) têm receio de adotar práticas muito inovadoras em seu sistema educacional. Afinal, se essas práticas não derem certo, poderão colocar em risco a posição já conquistada. Faz sentido, portanto, que sejam conservadores no tocante a seus sistemas educacionais – ou que, no máximo, introduzam algumas pequenas reformas para corrigir pequenas falhas.

Propostas inovadoras na área da educação provavelmente virão de países que, atualmente, estão muito mal avaliados em testes internacionais – como, possivelmente, o Brasil, concluiu Negroponte. Esses países têm bem menos a perder se as propostas não derem muito certo.

(Será que temos em nós aquilo que é necessário para corresponder à expectativa de Negroponte e nos transformarmos em líderes mundiais na área de inovação educacional?).

7. O contrassenso

Tudo o que foi dito até aqui parece-me fazer muito sentido. Na verdade, creio que dispensa argumentação adicional.

O que não faz sentido – o contrassenso – é continuar a investir, especialmente através de reformas cosméticas, em veículo que já deu o que tinha de dar, cujo motor vai fundir a qualquer hora, cuja suspensão está torta em decorrência de inúmeras batidas, cuja lataria está amassada, arranhada e meio solta, cujos pneus estão gastos, cuja embreagem torna a mudança de marchas penosa – e cuja manutenção é extremamente cara!

Parece-me evidente que, em caso assim, vale mais a pena trocar de carro. Apliquemos agora o argumento à questão que nos propusemos a discutir neste artigo.
 
8. Educação, mudanças e inovação
 
Ricardo Semler, que “virou a própria mesa” em sua empresa, a SEMCO, se propôs, no início dos anos 2000, a virar a mesa na área da educação. Criou um ambiente de aprendizagem diferente e inovador, a Lumiar, que pudesse servir de base para uma troca de paradigma na educação. Ele ainda a chamou de escola, porque, afinal de contas, a Lumiar se propunha a fazer aquilo que a escola deveria fazer, mas não fazia: ser o local em que crianças aprendem, com prazer, porque percebem o propósito e, portanto, o sentido das atividades em que se engajam, posto que podem escolher o que querem aprender. Assim, aprendem aquilo de que precisam para poder “sonhar seus próprios sonhos e transformá-los em realidade”.

Por que Ricardo Semler fez isso?

Porque, como ele costuma ressaltar (com base em estudos feitos, segundo alega, na Universidade de Chicago), a retenção média pelos alunos daquilo que o professor diz numa aula normal de uma escola convencional (em que o professor fala quase o tempo todo) é de cerca de 6%. Isto significa que na escola há uma perda de 94% daquilo que o professor diz. Nenhuma instituição com uma taxa de perda ou rejeição de 94% tem direito de sobreviver. Mantê-la é preservar o mais incompetente ambiente de aprendizagem que jamais se criou, e que é incompetente porque vai de encontro a tudo o que sabemos sobre como crianças, adolescentes e jovens aprendem – na verdade, sobre como qualquer um aprende.

Para quem pensa assim, não faz sentido tentar reformar o sistema educacional vigente, mantendo o paradigma: é preciso investir em um paradigma diferente. Nem a reforma básica dos essenciais se justifica, se se mantém o paradigma, porque o sistema não é capaz de fazer aquilo que se espera dele. Introduzir pequenas reformas cosméticas, que não afetam o essencial do sistema, então, é jogar dinheiro fora.

9. O sistema educacional brasileiro

Apliquemos agora o argumento ao caso da educação brasileira – falo principalmente da educação pública, mas não somente.

Dá para reformar um sistema educacional que consome uma quantidade enorme de recursos, que está entre os mais mal avaliados do planeta, e que permite que alunos cheguem à sexta, sétima e até oitava série basicamente analfabetos?

Ou será que é preciso substituí-lo por um sistema novo, basicamente diferente? É exatamente em casos assim que se justifica uma troca radical de paradigmas.

Se, no caso brasileiro, se justifica a busca de um novo paradigma, é contrassenso ficar exigindo do governo ainda mais recursos financeiros (10% do PIB, por exemplo), como o faz a professora potiguar que ficou famosa através do YouTube, para a manutenção de um sistema em condição tão precária. Dificilmente o investimento maior vai se traduzir em resultados proporcionalmente melhores.

Se o argumento está correto até aqui, certamente reformas cosméticas não se justificam. Mas sequer reformas que afetam os aspectos essenciais resolverão o problema.

10. Moral da história
 
Nós vivemos, todos sabem, no Brasil – um país que se via como gigante adormecido e que agora acha que nem emergente mais é, devendo ser contado entre os grandes. Mas todos sabemos que nosso sistema educacional não consegue competir com o da Finlândia, Hong Kong e Coreia do Sul, que operam em alto nível de qualidade, mas dentro de um quadro de educação tradicional. E igualmente sabemos que, na forma em que se encontra, o nosso sistema educacional também não tem conseguido se distinguir como realmente inovador.

Ou seja, não conseguimos reformar o carro, deixando-o “tinindo” (como se dizia antigamente), não conseguimos comprar um carro “novinho em folha” (como também se dizia antigamente). Na verdade, para conduzir o argumento a um novo patamar, muito menos conseguimos ser radicalmente inovadores e inventar novos meios de transporte!

Nesse quadro, causa-me pena ver os investimentos que são feitos com o equivalente de rodas de liga leve, volantes esportivos, pedais metálicos, alavancas de câmbio reluzentes, vidros ray ban ou insufilm na janela, sistemas de som sofisticados, isto é, com reformas cosméticas, quando o motor, a suspensão, a embreagem, os freios, etc. já deram tudo que podiam dar – e quando, talvez, nem mesmo um veículo novo, da mesma espécie, estaria à altura do desafio.

11. Quais são as reformas cosméticas na educação?

O que considero reformas cosméticas na educação são mudanças que se concentram no nível micro, que ficam muito próximas da prática atual, e que são incrementais (do tipo de tijolinho em cima de tijolinho).

Exemplos das micromudanças são propostas como WebQuests, WebLessons, WebClasses, Objetos de Aprendizagem, Planos de Aula Digitais, coisas assim facilmente encontráveis na internet. Tudo isso é parte de uma tendência atual na área de educação e tecnologia que integra a abordagem que chamo de “microentrega” (micro delivery) e “microgerenciamento” (micro management) do ensino. Nessa abordagem, embora se possa reconhecer que há problemas no paradigma educacional vigente, não se busca transformá-lo, ir além dele. Tenta-se fazer uso criativo e envolvente da tecnologia para atrair e engajar os alunos e assim conseguir uma sobrevida para o paradigma atual.

Maquia-se o defunto para dar a impressão de que ainda há vida nele. Em países como Finlândia, Hong Kong, Coreia do Sul, que têm bons sistemas educacionais dentro do paradigma vigente, essas microssoluções ainda fazem sentido. Aqui, não: desviam o foco do que precisa ser feito.

12. Inovação na escola ou inovação da escola
 
Enfim…

Nosso mundo tem sofrido mudanças consideráveis nos últimos 65 anos, desde o final da Segunda Guerra Mundial. Só essas mudanças no contexto em que a escola opera já seriam mais do que suficientes para que encarássemos seriamente o desafio de transformar a escola, reinventá-la, e não apenas introduzir pequenas inovações dentro dela. Mas elas vêm na sequência de uma série enorme de mudanças que ocorreram no século 19 e na primeira metade do século 20, ou seja, depois que o paradigma atual da educação escolar foi concebido, desenvolvido e implementado.

Falando de hoje, não basta introduzir o computador na sala de aula e no ensino do professor: é preciso criar novas formas de aprendizagem e novos ambientes de aprendizagem que, viabilizados pela tecnologia disponível (redes sociais etc.), prescindem da sala de aula e mesmo da escola, e permitem que as pessoas aprendam em qualquer lugar, a qualquer hora, de forma horizontal ou lateral, entre pares, e em contato com uma gama ampla e diversificada de pessoas que possam ajudá-las. Com isso, o ensino perde o seu sentido e os professores precisam reinventar o seu ofício.

O mindset (digamos, a organização mental) da maioria das pessoas é tão condicionado pelo paradigma de educação atual, centrado na escola, que elas não conseguem sequer imaginar uma educação que prescinda dessa instituição (até aqui, desde o século 18, o principal ambiente de aprendizagem), com seus currículos (que definem o que aprender: o conteúdo das disciplinas acadêmicas), metodologias (que especificam o como aprender: em decorrência do ensino), e agentes técnicos (representados por aqueles de quem se deve aprender: os ensinantes ou professores).
 
Se alguém não quer conceber uma educação sem escolas, sem ensino, sem professores (no papel concebido a eles até hoje), creio que seja um problema de conservadorismo. E todos têm direito de ser conservadores. Se, entretanto, não conseguem, o problema é outro: é de falta de imaginação.
 
Por mais absurdo que possa parecer a algumas pessoas, a educação não existe para dar emprego para burocratas, sindicalistas, autores, editores, livreiros, promotores de eventos, consultores – nem mesmo para professores e outros educadores. A educação existe para que cada bebê humano que nasce possa se desenvolver como um ser humano pleno: como pessoa que tem talentos, sonhos e desejos; como cidadão, que precisa viver em convivência com seus semelhantes; como profissional, que tem de encontrar um meio não só de ganhar a vida e se sustentar, mas de se realizar no processo; como “aprendente” permanente que tem de aprender, desaprender e reaprender o tempo todo, ao longo da vida inteira. Qualquer função, estrutura ou instituição que se pretenda educacional deve servir a esse propósito de contribuir para o desenvolvimento do ser humano – ou ir cantar em outra freguesia…

É da vida de cada um que se trata na educação. A opção de terceirizar para a escola e para o professor as ações voltadas para o desenvolvimento do ser humano, num processo do qual os maiores interessados não escolhem participar, mas são compelidos a fazê-lo, sem nenhum direito de se envolver na definição do que ali se passa, parece-me de longe a pior opção.

A educação é “prática de liberdade” (Paulo Freire), não sentença de 12 anos a ser cumprida em instituição que mais se assemelha a uma prisão (de país civilizado, há de se convir) do que a um verdadeiro ambiente de aprendizagem.
 
O que importa é a aprendizagem da criança, do adolescente, do jovem, do adulto, não o ensino do professor. Estamos cansados de saber que a maior parte das coisas realmente importantes que aprendemos na vida nós aprendemos (graças a Deus) fora da escola: aprender a ter iniciativa, aprender a se responsabilizar por nossas ações, aprender a assumir riscos, aprender a respeitar os direitos dos outros, aprender a dizer a verdade, aprender a ser honesto, aprender a se relacionar de forma mais íntima com outras pessoas, aprender a amar, aprender a apreciar o belo, aprender a imaginar o que não existe (mas é possível inventar…), aprender a agir moralmente, aprender a se posicionar de forma respeitosa perante a natureza e o universo.

E muito, muito mais.

Por mais vivo que ele possa parecer, e por mais que desejemos (por qualquer razão) que realmente estivesse, é preciso encarar a realidade e enterrar o defunto, antes que o processo de decomposição do cadáver comprometa a vida que ainda existe ao redor dele.

Extraído de: http://blog.aticascipione.com.br/eu-amo-educar/a-arte-de-maquiar-defuntos-e-as-pseudoinovacoes-educacionais/#comment-304

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